30/12/2012

CRÓNICA, 17

EXERCÍCIO DE AUTO-AJUDA PARA O ANO NOVO

Imagine por um momento que o fim do ano é o fim da vida. Responda com um "sim" ou um "não" (o "talvez" não vale e o "ns/nr" é muito mau sinal) às seguintes perguntas:

1. Conseguiu gostar mesmo da sua família, como se a tivesse escolhido?
2. Cuidou decentemente dos seus pais na velhice?
3. Cuidou de pelo menos uma criança e amou-a incondicionalmente?
4. Aprendeu a sentir-se em casa no seu corpo?
5. Amou alguém daquela maneira quase irrepetível?
6. Foi amado por alguém daquela maneira quase irrepetível?
7. Teve um/a melhor amigo/a?
8. Explorou os caminhos que a sua sensualidade lhe indicou?
9. Aplicou consistentemente a "regra de ouro"?
10. Não desperdiçou um talento?
11. O trabalho foi mais um prazer e realização do que uma seca?
12. Gostou genuinamente de conhecer os outros?
13. Interveio quando se impunha uma questão de justiça?
14. Lutou pelas causas em que acreditou?
15. Assumiu quem era, para lá da opinião alheia e das regras sociais?
16. Teve sentido de humor?
17. Cultivou a inteligência, não suportando a intelectualice?
18. Deixou-se fazer maluqueiras para também não ser um/a santinho/a insuportável?

18 respostas corretas (vá lá, sabe bem quais são): você não existe.
9-17 respostas corretas: good boy/girl, você esforçou-se.
1-9 respostas corretas: não tenho a certeza de querer conhecê-lo/a.
0 respostas corretas: afinal é você a pessoa a quem se aplica o "ano novo, vida nova", mas a gerência duvida seriamente que ainda vá a tempo.

16/12/2012

CRÓNICA, 16


ISTO PODIA TER SIDO UM SÍTIO DECENTE


Costumo dizer: este país tinha todas as condições para ser um lugar decente. Vejamos. Graças ao 25 de abril conseguimos coisas preciosas: voltar às fronteiras do país pequeno, sem o peso iníquo das colónias; recuperar a democracia; entrar no projeto europeu. Ficámos neste retângulo e ilhas, de fronteiras estáveis há muito tempo e um certo tipo de homogeneidade que é aquela que conta – a noção descansada de estar num sítio que não precisa de se afirmar constantemente. (A outra homogeneidade, a “étnica” ou linguística, pouco me interessa). Dez milhões de pessoas não é nada. É fácil de administrar. Ora, com dez milhões, um território pequeno, democracia, e o apoio europeu, o que costumo dizer é isto: não há desculpa para não ter feito disto um sítio mais decente.

O que é um sítio decente? Bem, um sítio onde reina a transparência democrática; onde reina o princípio da igualdade de oportunidades; onde se constrói e sustenta um estado social baseado na solidariedade; e onde se incentiva a liberdade e a criatividade nas e das pessoas. Convém dizer que avançámos muito nesse sentido: na qualidade de vida, na paz e democracia, na saúde, na qualificação das pessoas, na energia, na criação de nichos económicos virados para fora e para a criação de valor acrescentado. Temos mais recursos do que pensamos e mesmo aqueles que podem parecer desinteressantes, como o turismo, podem ser criativa e qualitativamente utilizados de outras formas. Quando alguém falava de Portugal como a possível West Coast da Europa até que nem estava a dizer disparate nenhum. Estava cá quase tudo para isso e o que faltava – por exemplo a aposta na ciência , na educação, na cultura – estava a ser feito, e basicamente bem.

Tivemos o vislumbre disto em alguns momentos, com alguns governos e, sobretudo, com a ação de algumas pessoas, empresas, universidades, meios, forças, movimentos. Em contracorrente disto tivemos sempre as forças da... reação. (Que outra expressão usar, sim, que outra?). As forças da canibalização do estado pelos interesses privados, do sistema da cunha e do compadrio, da drive do dinheiro fácil e não produtivo, do desprezo absoluto pelas desigualdades sociais, essas travaram a possibilidade que tínhamos. E essas forças podem ser designadas como “cavaquistas”, o universo da betoneira empreiteira, do diploma fácil, da especulação financeira, da trapaça. Forças que contaminaram também vastos sectores do PS, infelizmente.

[Um capanga da JSD dirige-se um dia a uma professora universitária e pergunta-lhe como teve ela o descaramento de lhe dar uma má nota naquela "porcaria de cadeira". O mesmo capanga inepto faz a sua carreira oportunista no partido e nos governos. Pavoneia-se alcoolizado, inchado e prematuramente envelhecido no Parlamento, onde diz alarvidades. É um infeliz, mas um infeliz enriquecido sem trabalho nem mérito. É o infeliz que ganhou]

E infelizmente a reação ganhou. Não lhe interessa a educação, o conhecimento, o ambiente, a solidariedade como criadores da decência que depois permite o crescimento económico enquanto preocupação política global e não mera acumulação estéril por alguns. A contracorrente ganhou e está feliz no seu novo  projeto global, onde mistura narrativas grandiosas sobre a História nacional e a língua com os negócios com as novas oligarquias das ex-colónias. Está-se igualmente nas tintas para a Europa, para a participação ativa e crítica na renovação, bem precisa, do projeto europeu. Apenas apanha a boleia do pior que os piores setores europeus exigem: o plano da troika, exacerbado pelos executores nacionais, mais papistas que o papa, mais reacionários que a reação.

Esfrangalharam a hipótese de um local decente para 10 milhões de pessoas e para todos e todas que cá quisessem viver e contribuir com ideias, trabalho, crianças, vida. Nós sonhávamos com a West Coast, eles com um Katrina sobre New Orleans. Ganharam. They’re feasting on our souls.

23/11/2012

CRÓNICA, 15

LISTEN, KIDDOS

Listen, kiddos, descobri uma coisa que pode ser-vos útil. Descobri que mais difícil do que o coming out como gay é o coming out como... sénior (ai, os eufemismos). O coming out como gay é um processo de encontro consigo mesmo, libertador. O coming out como sénior é um processo de confronto consigo mesmo, constrangedor. Vou contar-vos um pequeno e banal episódio. No ginásio vou olhando para as pessoas da maneira culturalmente, hum, prescrita para o masculino (e, portanto, para o gay...). Outro dia reparei num homem que estava mesmo ao meu lado no balneário e dei por mim a reagir automaticamente no modo "ná, não interessa". Entretanto sentei-me, desfiz o laço dos atacadores e quando levantei a cabeça tive uma epifania: olhei para o homem de novo e vi que... era igual a mim. Era igual a mim na cara, no cabelo ou lack thereof, na cor do mesmo, no corpo, até na forma de vestir, assim entre o não quero parecer um velho patético a vestir-se à jovem mas também não quero parecer um pateta velho que desistiu. Fiquei chocado. Tinha ali a prova de uma teoria que julgo estar corretíssima: a de que a nossa auto-imagem, a ideia que temos de nós mesmos nas profundas do cucuruto, para algures nos thirty-something. Ou aos 40, vá. [Aos 40, já agora, tive a minha primeira grande crise existencial: separei-me do meu companheiro de muitos anos, desde a juventude praticamente, tive o primeiro problema de saúde que levaria a muitas dores, uma operação e alguns impedimentos definitivos, e soube do cancro do meu pai, que viria a morrer dele].  Congelamos ali todo o crescimento desde a juventude; paramos ali antes de entrar na "decadência"; e paramos ali também porque chegámos ao ponto em que construímos praticamente tudo o que nos identifica, depois de mil hesitações, mil parvoíces, mil seguidismos e uns tantos desgostos, que são sempre uma boa escola. Depois continuamos a ver-nos assim, e o corpo continua a fugir-nos, a dissonância aumenta e de repente vivemos numa espécie de fantasia maluca da qual só saímos quando alguém nos confronta com a imagem que eles, os outros, têm de nós. Nunca bate a bota com a perdigota. O senhor do ginásio que o diga - ele que certamente sentiu o mesmo em relação a mim (e espero que tenha tido a sua epifania - was it good for you too?). Depois, kiddos, há mais neste coming into age (que o coming of age é mais o que acontece com o coming out como gay): no universo gay ser-se sénior ainda tende a ser pior. Reparem nisto: os sinais de apreço para com a minha modesta pessoa madura vêm sobretudo de mulheres heterossexuais. Deve ser por causa da mistura entre o meu straight acting (não conscientemente construído) e o 'cadinho de bichice que ainda deixo transparecer e que deve ser lido como "sensibilidade", whatever that means. Eu gosto muito dessas senhoras e agradeço-lhes muito, mas... really? Quando a gente chega ao que interessa, let me tell you, não há nada de interessante na senioridade e não acreditem nas tretas sobre a sabedoria e não sei quê. Somos sempre putos, todos e todas, queremos colo. Até a pessoa que está à beira da morte é uma criança a pedir mimo e a perguntar "porquê?" E prontoS, kiddos, esta é a pregação do dia (how senior of me...). Ah, mas para terminar numa nota upbeat, já agora, também foi aos 40 que de repente tudo recomeçou. Já dos 50 para cá não posso dizer o mesmo, a não ser que me permitem escrever tolices como a que acabam de ler. Juro que é a última vez que escrevo sobre isto (a não ser que algum pré-alzheimer me faça esquecer a promessa) e que vou meter o assunto na gaveta da cómoda que herdei da avó - o equivalente gay sénior do armário gay júnior. Fiquem bem e não se esqueçam: olhem que tudo o que forem agora congela aos 40. It better be good, it better be gay.

11/11/2012

CRÓNICA 14

AS COISAS QUE ME IRRITAM NAS CONVENÇÕES DA ESQUERDA

Digamos que sobre a direita está tudo dito. O verdadeiro desafio é criticarmos os nossos - e a nós mesmos. Na esquerda - whatever that means - há uma série de convenções que me irritam solenemente. Vamos a elas.

Irrita-me a ideia de utopia, de futuro, de amanhãs que cantam, de homens novos. A coisa é normalmente apresentada como poética, mas na realidade é muito pobre de espírito. Não por causa dos horrores que se cometeram em seu nome, mas porque não há nada de original em utopizar e, de caminho, cometer horrores em seu nome. Consigo pensar em várias igrejas e seitas, consigo pensar no desenvolvimentismo, consigo pensar nos colonialismos, consigo pensar na crença no mercado. O pior é que os conteúdos da utopia são erroneamente vistos como os princípios de que não se abdica. Ora, a utopia é coisa de fantasia e os princípios não estão lá. Os princípios já estão cá.

Irrita-me também, e fazendo comboiozinho com esta coisa dos princípios, a tendência para a intransigência purista. Veja-se como o drama da esquerda é quase sempre a impossibilidade de se coligar. Reconheço que isto pode ter um elemento positivo: sinal de diversidade, logo de pensamento crítico. Mas a verdade é que a maior parte das vezes tudo se assemelha muito mais às guerras entre protestantes e católicos do que a outra coisa. Toda a gente na esquerda é, consoante a linguagem de época, revisionista, traidor, vendido, extremista, radical. Sempre a acusação mútua sobre quem representa menos bem a família.

Mais um comboiozinho: a intransigência purista tem uma versão engraçada que é a do nunca nada está bem ou sequer melhor. Veja-se a reação de algumas pessoas e setores à vitória de Obama. Se Obama é americano e dirige os EUA a sua vitória não pode ser considerada boa, porque não há cá lugar para relativizações. Qualquer celebração da vitória de Obama - e da sua importância para contribuir para a derrota do pensamento reacionário em vários planos e em todo o mundo - é vista como cedência intelectual e política. É assim como achar que Sócrates e Passos são a mesma coisa. Ou não ligar a mínima ao facto de que a aposta na qualificação das pessoas, no ensino e na ciência e na economia com base na tecnologia e nas energias alternativas ter sido a única iniciativa comprovadamente de futuro e crescimento nos 30 anos de democracia e a ter tido efeitos; e não ver que é justamente isso que Passos está a destruir, para lá até da troika. Enfim: nunca aceitar que há melhor e pior, que há coisas que melhoram. Não, se não estão de acordo com o programa...

Irrita-me ainda o preconceito de quem acha que não tem preconceitos e publicita os pergaminhos do combate ao preconceito. A vigilância preconceituosa em relação a tiques de classe, formas de vestir, estilos de vida, quem representa bem e quem embaraça certos grupos cujas causas supostamente se apoia, etc., etc., só tem equivalência nos preconceitos da direita estabelecida. A direita "preconceitua" com base na ideia de obediência às coisas tal qual elas são, de obediência aos costumes e de vergonha face à sua quebra. A esquerda "preconceitua" com base na ideia de que um certo comportamento introduz uma contradição insanável no modelo utópico do tipo de pessoa que se deseja para o futuro.

E este preconceito estende-se a outras esferas. Por exemplo, o anti-americanismo chega a roçar o puro etnocentrismo. Quantas pessoas de esquerda não imaginam os EUA como um sítio de pessoas ignorantes, reacionárias, e obesamente alimentadas a uma dieta de McDonald's? Idem para a muito fina linha divisória entre anti-sionismo e antissemitismo, para o anti-europeísmo latente, para a associação fácil entre alemães e nazismo ou para o discurso desculpativo em relação a tantas experiências de socialismo dito "real". Really...

E para que não pensem que isto é uma diatribe direcionada apenas à esquerda dita radical, há que dizer que o movimento contrário, infelizmente comum na social-democracia das últimas décadas, também não augura nada de bom. A vontade quase histérica de querer parecer "responsável", de não assustar as convenções sociais da classe média, e de pretender gerir o capitalismo quando este já passou para um estádio que não permite a gestão ao mero nível nacional, acaba por constituir a imagem invertida no espelho. Os radicais têm de descer à Terra, que é habitada por gente concreta e contraditória, algo que acontece devido ao simples facto de ser humana. E os reformistas têm de olhar um bocadinho para as nuvens, para desgrudarem os sapatos de um chão já muito sujo.

28/10/2012

CRÓNICA, 13

MELHOR PARA MAIS GENTE E MAIS DEPRESSA

Não consigo pensar em termos de utopias. Aliás, a palavra provoca-me urticária. Faz-me pensar em coisas dos anos sessenta, que geralmente me provocam um bocejo de enfado, ou em projetos revolucionários, homens novos e toda a espécie de transformações do mundo por decreto. Ná.

Claro que também não consigo pensar em termos de "não há nada a fazer" ou "as coisas são o que são". Aliás, pensar isso não qualificaria sequer como pensamento, mas como preguiça mental. Não acho que o sistema em que vivemos - que dá pelo nome de capitalismo, se bem que a simples invocação da palavra já provoque toda a espécie de potenciais posicionamentos, políticos e estéticos - seja "natural", o melhor, ou que dure para sempre. Afinal, nem sempre existiu.

Correndo o risco de parecer aborrecido e confortável e cosy, como numa imagem retirada de algum catálogo IKEA, sou dos que acham que as melhores experiências, e com os melhores resultados, de melhoria da condição humana coletiva foram feitas pelas social-democracias escandinavas. Dito isto, perguntam-se os mais revolucionários ou de inclinação radical se não se tratou apenas de uma "gestão" do capitalismo, e à custa de desigualdades não nacionais mas planetárias. Talvez. Mas que foi do melhor que fizemos, foi.

Acontece que entretanto duas coisas aconteceram - e estão relacionadas. Por um lado o dito capitalismo transformou-se. E de que maneira. Ele é global, ele é financeiro, ele é virtual, ele é deslocalizado, ele é des-nacionalizado, ele não é baseado no trabalho humano tal como o conhecemos. Por outro, o melhor da social-democracia definhou, não tendo conseguido acompanhar aquela transformação. Suicidou-se, por assim dizer, no deslumbramento da Terceira Via com as mudanças no capitalismo. À crescente incapacidade de responsabilizar e controlar os excessos e procedimentos do capital juntou-se a desistência da social-democracia em procurar soluções novas para problemas novos.

Por todo o lado all hell broke loose: o "regresso" do religioso sob formas fundamentalistas, o regresso do nacionalismo, a adesão ao capitalismo selvagem e a formas autoritárias que com ele se aliam nos países ex-socialistas, a contaminação de quase toda a gente pelo espírito do capitalismo especulativo (em quase tudo, até na vida privada), a demagogia antidemocrática aliada ao descartar da democracia pelo grande capital, e a incapacidade das esquerdas em reagir e repensar: da desistência dos partidos socialistas e social-democratas, às mil e uma tentativas intelectuais de perceber as coisas por parte da esquerda mais radical, passando por movimentos sociais que em alguns lugares mais parecem remakes de revoltas camponesas do passado.

E se a social-democracia escandinava foi o modelo mais bem sucedido de mais bem-estar para mais gente e mais depressa, a Europa enquanto projeto político de paz e integração foi das promessas mais interessantes (de novo, pouco entusiasmante para o espírito-bandeira, mas quem disse que isso é importante?) de criação do supra-nacional. Também ela, coitada, está moribunda.

Eu continuo a não crer em, nem a querer, utopias, messianismos, ou revoluções por decreto. E não tenho grande paciência, talvez por ter uma noção realista-cínica da curteza da vida humana, para processos lentos e feitos da junção de mil pedacinhos, das mudanças dos modos de vida quotidianos por iniciativa pessoal ou de pequenos grupos, por muito nobres que sejam (e são) - das trocas sem dinheiro, ao new age, aos mercados biológicos, e etc. Quero é outra vez a capacidade de olhar para o mundo tal como ele se apresenta, feito de conflitos, de contradições, de bem e de mal, com a natureza humana tal qual ela é (repitam-se aquelas palavras) e perguntar: que políticas concretas para fazer mais gente mais feliz mais depressa em todo o lado?

E não tenho dúvida de que essas políticas passam pela Política, por opções de regulação e controlo do desregulamento descontrolado do capitalismo nas últimas décadas (e aí, sim, teremos, se quiserem assim chamar-lhe, uma política anticapitalista, mas não no sentido de desejo de refundação absoluta e imediata que a expressão normalmente assume) e, no caso que nos é mais próximo (mas com consequências planetárias) pela criação de uma Europa verdadeiramente democrática, federal e simultaneamente cheia de aberturas a diversidades e multiplicidades - de identidades e de reconhecimento de desigualdade.

Mas a crise atual é o absoluto oposto disso. Não podíamos ter chegado mais baixo. E se a curva não começa a subir, a culpa será precisamente de quem não soube repensar tudo isto para agir de modo novo: quem mais defendeu a social-democracia, quem mais defendeu a Europa.

24/10/2012

CRÓNICA, 12

CRIME, QUAL CRISE

Deixemos de lado os episódios de crise política - e foram tantos - no Portugal das últimas décadas. Deixemos de lado as turbulências do verão quente de 1975, a intervenção do FMI nos anos '80, os escândalos com governantes, empresas e finança (cada qual por si ou em misturas várias), o cavaquismo, a fuga de Barroso, o patético governo Santana Lopes, enfim, o que quiserem segundo os vossos gostos e desgostos políticos. Pensemos nos momentos verdadeiramente marcantes.

Eles são três. O primeiro é a própria ditadura, cujo fim dá início ao que quero dizer por "as últimas décadas". A vergonha de viver sob ditadura, com colonialismo e num regime moral fora dos tempos modernos continua a ser a nossa memória negativa mais marcante. O país foi condenado por aquele regime a um atraso que tem sido difícil - para não dizer impossível - ultrapassar. E condenado foi a uma visão negativa e derrotista de si próprio - não porque nos tenhamos tornado "salazaristas", como é costume dizer-se, mas porque vivemos com aqueles tempos como o nosso pior pesadelo. Mesmo, por estranho que pareça, para os que nos autocarros e em concursos televisivos desabafam saudades salazarengas: desejam o pior na iminência do mau.

O segundo foi o "25 de Abril". Entre aspas porque não se refere apenas à data em si, mas a todo um processo subsequente que, por sua vez, foi mais do que o PREC - foi todo um esforço de construção de democracia. Uma democracia política, mas também a descolonização, também a construção de um estado social, também o crescimento da igualdade de oportunidades, também "a Europa", também a transformação de mentalidades. "O 25 de Abril" foi o orgulho depois da vergonha.

E o terceiro momento é este que vivemos agora. Não estamos a passar por uma mera "crise", como já passámos por tantas (vivi vários períodos com esse epíteto usado em jornais e na boca de intervenientes políticos). Não estamos a passar por qualquer coisa que vai passar logo, se respirarmos fundo e tivermos paciência. O que está a acontecer é muito, muitíssimo, incomensuravelmente mais grave do que qualquer uma dessas crises, das inflações a intervenções anteriores do FMI, de governos patéticos a efeitos do preço de petróleos e quejandos. O que estamos a viver é a destruição sistemática da sociedade civilizada e dos seus valores tal como a e os conhecemos. Feita já não apenas - e cada vez menos sobretudo - por uma intervenção externa baseada no domínio de uma Europa politicamente fraca por um segmento das instâncias financeiras e governamentais alemãs, mas sim pelos nossos próprios governantes.

Quem nos governa neste momento padece já da volúpia própria da loucura. Da vertigem que assalta o criminoso que, depois de desferir o primeiro golpe com a faca, não consegue parar de desferir golpe atrás de golpe atrás de golpe, bem para lá da morte da vítima. Em nome de uma teorização própria de uma seita ideológica, Passos, Gaspar e Relvas, a verdadeira troika (auxiliada pela cobardia do suposto "presidente" de uma suposta "república") propõem-se destruir o mundo tal como o conhecemos, para que tudo supostamente recomece depois de queimada a terra.

Depois da vergonha da ditadura e do orgulho da democracia, vivemos a tragédia do que chamam "crise" mas que deveria chamar-se, com uma ligeira troca de letra, crime. O terceiro momento crítico da história das últimas décadas corre o risco de ser o último, porque o que vivemos é de uma gravidade extrema, uma ditadura de um outro tipo implementada por uma democracia que estão a perverter. E seria bom deixarmos de uma vez por todas de aceitar que se culpe o passado, que nos culpem a nós, ou de culpar apenas uma força externa. Os loucos estão aqui. Estão de faca na mão. E olham para o sangue com o olhar vítreo e meio infantil de quem não distingue o bem do mal.

Post (literalmente) scriptum:  É natural que alguém comente que chamar-lhes "loucos" é desculpá-los e esquecer a racionalidade do seu projeto, esse sim atacável (embora eu ache que esse projeto não se resume ao "capitalismo", mas a uma tendência dentro deste). Em momento algum quis torná-los "inimputáveis" e a loucura, naturalmente com aspas implícitas, é uma imagem de condenação moral. Mas não esquecer que a hiper-racionalidade (por ex, a desta ideologia da seita vinda de segmentos do BCE e do Banco Central Alemão) e a loucura têm uma fronteira muito ténue...