27/09/2012

CRÓNICA, 6

JOANINHAS E MACAQUINHOS

Conheci-a no autocarro. Sentada à minha frente, falava ao telemóvel. Bem-disposta e descontraída, relatava a alguém que tinha vendido um dos macaquinhos com defeito. A uma velhota, "que aquilo é mais para crianças e os velhotes nem percebem bem como é que funciona". Ria-se muito, sem qualquer auto-censura em relação ao que estava a dizer. O meu primeiro instinto foi embirrar. Mas, desligado o telemóvel, meteu conversa com as pessoas que iam com crianças. Perguntas carinhosas, comparações simpáticas com a sua própria filha. Uma performance curiosa noutros aspetos também: com uma forte pronúncia do Porto, esforçava-se em momentos por usar expressões e entoações próprias da burguesia lisboeta. Até o nome da sua filha estava em consonância.

Saí do autocarro pensando: que falta de brio, vender propositadamente uma coisa estragada. Mas também: algo não bate certo, ela era simpática. E mais: não parece sequer ter consciência das contradições. E logo esqueci-a. Duas semanas depois entro num local público e encontro-a vendendo macaquinhos e joaninhas a quem entra. Brinquedinhos com alguma espécie de mecanismo. Brinquedinhos cuja venda reverte para ajudar crianças com alguma doença crónica. Tomo a iniciativa: "Conheci-a num autocarro há uns quinze dias, lembra-se?". Desfaz-se em sorrisos, que sim, claro, lembra-se muito bem, como vai a vida, vai-se andando, a fazer por ela (pela vida...). Brilhava - e o seu sorriso afastava o cinzentismo tão típico de Lisboa, de Portugal, da Crise. Enquanto vendia joaninhas e macaquinhos - umas em bom estado, outros certamente defeituosos.

Será ela tola, hipócrita, disfarçada, ingénua, de má ou boa fé? Tudo isso e nada disso. É humana. É normal. É real. Só lhe falta - a ela, a tanta gente, a mim - uma coisa: o pequeno esforço extra. O pequenino esforço extra que nos faz avançar do potencial para a concretização. Um bocadinho mais de brio. Um bocadinho mais de autocrítica. Um bocadinho mais de coerência entre o sorriso empático e a empatia com... a velhota que não percebe o mecanismo do macaquinho.

Gostei desta mulher. A sério. Mas poderia ter gostado mais - e isso faria toda a diferença.

1 comentário:

  1. A atitude que descreve tem um nome, que é DESONESTIDADE.
    Mas há vários tipos de desonestidade.
    E como é uma desonestidade assumida sem qualquer pudor e apoiada, também assumidamente, numa fragilidade específica do outro, julgo mesmo que a posso classificar de OBSCENA.
    Não há dúvida que a desonestidade é própria do ser humano. Mas nem todos somos desonestos.
    Posso até aceitar um comportamento normal e não de sua inteira responsabilidade.
    Mas atendendo a todos estes factores, e assumindo que já fui desonesta, não tenho qualquer dúvida de que não me seria possível sentir qualquer empatia por esta pessoa, tal como é descrita.

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