BEAUTIFUL BULLSHIT
Sempre que ouvimos dizer "vive o presente", "um dia de cada vez", "vive cada dia como se fosse o último", "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", "o passado já lá vai" ou alguma frase equivalente sobre o futuro temos um pequeno curto-circuito mental. A intenção das frases é excelente, mas elas simplesmente não fazem sentido. Por uma razão lógica - não há presente capturável; mas por uma razão sobretudo, digamos, cultural: é impossível a um ser humano viver sem memória e sem projeção. Mais: todos os atos no dito "presente" são lidos como parte de uma narrativa, como agora é moda dizer. Há os antecedentes para eles, que se tornam evidentes nele; e há as possibilidades - os desejos ou os medos, tanto faz - que eles abrem. Somos história e História, para o bem e para o mal. O presente não existe.
Resolvido este gravíssimo problema, aparecem-nos com a coisa de "o tempo tudo cura". Ora, o tempo não cura coisíssima nenhuma, a não ser que por "curar" se entenda processo semelhante ao dos queijos - a casca fica mais dura e o cheiro torna-se pivete. Admito que, para apreciadores de queijo (entre os quais não me incluo especialmente), também o sabor se apure. Mas a verdade é que esta cura nada tem a ver com a outra. O que a passagem do tempo ajuda a fazer é a criar hábito. Como o hábito que se apossa do prisioneiro. A claustrofobia diminui. O horror de antecipar um futuro confinado diminui. Desenvolve-se outra vida, mental e física. Às vezes até se criam laços com as paredes e as grades. Mas é "só" isso: o hábito, um hábito que transforma a ferida em crosta. E o hábito faz o homem, já dizia não sem quem em linguagem bem pouco feminista.
E depois dizem-nos também que devemos ser nós "próprios", pensar com as "nossas" cabeças, tomar as "nossas" decisões, não seguir "os outros", as expetativas sociais, os guiões oferecidos, cultivar a liberdade individual, eu sei lá. Acontece que a ideia de um indivíduo autónomo é isso mesmo, uma ideia. Ao organismo que, da saída do útero ao regresso à comunhão com os outros átomos na natureza, parece individual, não corresponde uma vida individual. Sorry to be the one to break the news. Somos relação, para o bem e para o mal. As nossas cabeças não pensam sozinhas. Não podem pensar sozinhas. Se pensassem sozinhas não...pensavam. Assim como não sonham, não temem e não decidem sozinhas. O que melhor nos descreve é um rizoma: aparentamos individualidade, mas estamos todos ligadinhos por baixo da terra.
É tudo bullshit. Treta. Bullshit que não aguenta dois segundos de escrutínio lógico. Que não aguenta mesmo o teste da realidade. E o teste é simples. Ora perguntemo-nos: a) quando foi a última vez que vivemos o presente sem que ele fosse uma comparação com o passado ou uma ameaça ou esperança para o futuro (OK, talvez durante um orgasmo, e por isso se calhar os perseguimos tanto)?; b) qual a ferida que verdadeiramente curou, ao ponto de não restar a mais ténue cicatriz e de não gerar o medo de feridas futuras?; c) quando foi tomada a última decisão individual livre que não comportasse um niquinho de culpa por esquecer algum outro ou que não fosse o fruto de uma aproximação a um outro?
Estão a ver? Estamos feitos. Somos feitos, é o que é. E no entanto... E no entanto (ah, porque já pensavam estar perante um monstro cínico e hiperlógico, confessem) não conseguimos viver sem a bullshit. Mais: só percebemos que tudo é narrativa, que tudo é desgaste, que tudo é relação, graças à bullshit. Sem a bullshit a narrativa era de terror, a experiência era decadência, a relação era prisão. A treta é o nosso conto de fadas, que nos permite fazer o exato contrário do que ela diz, como se abdicássemos do ideal que ela nos propõe e, ao fazê-lo, sentirmos que estamos a descobrir what this is all about. Sentir em conjunto a densidade de uma estória no escurinho do cinema, lamber as feridas dos outros e ao fazê-lo lamber as nossas, e fundirmo-nos, sairmos de nós no amor. É treta, mas é linda - beautiful bullshit.
P.S.: Perceberam como tudo isto se baralha no fim? É que é assim mesmo... ;)
Sempre que ouvimos dizer "vive o presente", "um dia de cada vez", "vive cada dia como se fosse o último", "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", "o passado já lá vai" ou alguma frase equivalente sobre o futuro temos um pequeno curto-circuito mental. A intenção das frases é excelente, mas elas simplesmente não fazem sentido. Por uma razão lógica - não há presente capturável; mas por uma razão sobretudo, digamos, cultural: é impossível a um ser humano viver sem memória e sem projeção. Mais: todos os atos no dito "presente" são lidos como parte de uma narrativa, como agora é moda dizer. Há os antecedentes para eles, que se tornam evidentes nele; e há as possibilidades - os desejos ou os medos, tanto faz - que eles abrem. Somos história e História, para o bem e para o mal. O presente não existe.
Resolvido este gravíssimo problema, aparecem-nos com a coisa de "o tempo tudo cura". Ora, o tempo não cura coisíssima nenhuma, a não ser que por "curar" se entenda processo semelhante ao dos queijos - a casca fica mais dura e o cheiro torna-se pivete. Admito que, para apreciadores de queijo (entre os quais não me incluo especialmente), também o sabor se apure. Mas a verdade é que esta cura nada tem a ver com a outra. O que a passagem do tempo ajuda a fazer é a criar hábito. Como o hábito que se apossa do prisioneiro. A claustrofobia diminui. O horror de antecipar um futuro confinado diminui. Desenvolve-se outra vida, mental e física. Às vezes até se criam laços com as paredes e as grades. Mas é "só" isso: o hábito, um hábito que transforma a ferida em crosta. E o hábito faz o homem, já dizia não sem quem em linguagem bem pouco feminista.
E depois dizem-nos também que devemos ser nós "próprios", pensar com as "nossas" cabeças, tomar as "nossas" decisões, não seguir "os outros", as expetativas sociais, os guiões oferecidos, cultivar a liberdade individual, eu sei lá. Acontece que a ideia de um indivíduo autónomo é isso mesmo, uma ideia. Ao organismo que, da saída do útero ao regresso à comunhão com os outros átomos na natureza, parece individual, não corresponde uma vida individual. Sorry to be the one to break the news. Somos relação, para o bem e para o mal. As nossas cabeças não pensam sozinhas. Não podem pensar sozinhas. Se pensassem sozinhas não...pensavam. Assim como não sonham, não temem e não decidem sozinhas. O que melhor nos descreve é um rizoma: aparentamos individualidade, mas estamos todos ligadinhos por baixo da terra.
É tudo bullshit. Treta. Bullshit que não aguenta dois segundos de escrutínio lógico. Que não aguenta mesmo o teste da realidade. E o teste é simples. Ora perguntemo-nos: a) quando foi a última vez que vivemos o presente sem que ele fosse uma comparação com o passado ou uma ameaça ou esperança para o futuro (OK, talvez durante um orgasmo, e por isso se calhar os perseguimos tanto)?; b) qual a ferida que verdadeiramente curou, ao ponto de não restar a mais ténue cicatriz e de não gerar o medo de feridas futuras?; c) quando foi tomada a última decisão individual livre que não comportasse um niquinho de culpa por esquecer algum outro ou que não fosse o fruto de uma aproximação a um outro?
Estão a ver? Estamos feitos. Somos feitos, é o que é. E no entanto... E no entanto (ah, porque já pensavam estar perante um monstro cínico e hiperlógico, confessem) não conseguimos viver sem a bullshit. Mais: só percebemos que tudo é narrativa, que tudo é desgaste, que tudo é relação, graças à bullshit. Sem a bullshit a narrativa era de terror, a experiência era decadência, a relação era prisão. A treta é o nosso conto de fadas, que nos permite fazer o exato contrário do que ela diz, como se abdicássemos do ideal que ela nos propõe e, ao fazê-lo, sentirmos que estamos a descobrir what this is all about. Sentir em conjunto a densidade de uma estória no escurinho do cinema, lamber as feridas dos outros e ao fazê-lo lamber as nossas, e fundirmo-nos, sairmos de nós no amor. É treta, mas é linda - beautiful bullshit.
P.S.: Perceberam como tudo isto se baralha no fim? É que é assim mesmo... ;)
Concordo! Fica cá quase tudo, e o quase tudo nos faz reagir por expectativa - lograda, confirmada, parcialmente materializada, tanto faz, mas expectativa. Saímos da anterioridade pelo hábito, pela acomodação. O hábito nos aprisiona e nos dá "nova liberdade" simultaneamente real e irreal.
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